Os fatos comprovam: o crescimento moderno das economias não acontece de forma dissociada da degradação ambiental e social. Recente estudo aponta que a Terra já rompeu sete dos nove limites planetários.1 Só a camada de ozônio e os aerossóis seguem dentro dos limites. Balanço feito, a ação humana é o principal catalisador dessas agressões, digamos assim, à saúde planetária. Na verdade, estamos deixando de lado as condições seguras (zonas operacionais seguras) do planeta. O que claramente significa dizer que nosso estúpido excesso de consumo, num planeta finito, responde abertamente pela atual e grave crise aberta no meio ambiente. Tanto que, nossa não menos insustentável maneira de produzir, significa aumento das emissões. Assim sendo, pela primeira vez é possível afirmar que tudo o que criamos (indústrias, prédios, habitações, estradas, eletrônicos, automóveis) já é mais pesado do que a vida na Terra. Dessa perspectiva singular se diz, sem meias palavras, que a ideia que temos de crescimento econômico (tornar a economia maior) desafia, pois, os limites planetários, ou as zonas seguras dos sistemas naturais. Por consequência, nesse mundo de economia opulenta, tudo indica que “a humanidade esqueceu que faz parte da seleção natural e que, por mais que possamos parecer no ápice da cadeia alimentar, a natureza não pode ser gentil conosco no futuro”, sentencia William Rees.
Daí em diante, eis a dedução óbvia: “sequer estamos preparados para proteger a natureza”, como faz questão de lembrar o filósofo Peter Sloterdijk.
Em todo esse pormenor, temos o básico: para erguer a ideia de progresso (ou modernidade, dá no mesmo) que julgamos conveniente, seguimos devastando (em velocidade assustadora) a riqueza ambiental, seja a cobertura vegetal, o mundo selvagem, os biomas ou os ecossistemas, dos quais o sistema vida depende.
Serve de rápido exemplo: em 40 anos, a Amazônia perdeu área de vegetação do tamanho da França – foram 52 milhões de hectares (-13% de área de vegetação nativa) entre os anos 1985 e 2024.
De forma severa, isso quer dizer que ameaçamos a capacidade de a maior floresta tropical do mundo contribuir com o equilíbrio planetário.
Drama contemporâneo, soa lícito dizer que estamos nos aproximando da faixa de 20% a 25% prevista pelo conhecimento científico como o possível ponto de não retorno do bioma. Isso quer dizer: a floresta não mais consegue se sustentar.
Em linguagem simples, derrubar vegetação significa provocar o aumento de temperatura da atmosfera. Na dúvida, os resultados estão aí nos mostrando que o planeta vem batendo recordes de temperatura da atmosfera.
Nota importante: o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus3 (abreviado como C3S), da União Europeia, confirmou: 2024 foi o primeiro ano a exceder 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Foi o ano mais quente em escala global já registrado.
Para continuar aqui falando o básico, eis que o mundo e o clima estão abalados por conta das atividades humanas (nosso antropocentrismo) que exploram recursos naturais. Nessa direção, os alertas científicos são cada vez mais claros: mais calor na Terra significa, em muitos casos, fragilidade dos recursos naturais, e mais ocorrências de eventos climáticos extremos. Portanto, falamos da enfermidade global de agora que polariza todas as atenções, ao mesmo tempo em que atravessamos uma crise sistêmica que altera as condições sociais. Logo, sendo global e multidimensional, como é fácil imaginar, para falar como Frédéric Lenoir “toca todos os setores da vida humana”.
Por outro lado, reivindicando novas emergências, os saberes da ciência também confirmam o que já é esperado: sob a lógica capitalista (ideologia das quantidades) que ignora os limites do mundo físico, os sistemas de vida do planeta estão ameaçados, alguns seriamente ameaçados. Assim se diz que nós, os humanos (representando 0,01% da vida no planeta),4 já alteramos três quartos do ambiente terrestre e cerca de 66% do ambiente marinho.
E tem mais: de quarenta mil espécies estudadas, 12% de todas as aves, 13% das plantas e 25% dos mamíferos correm risco de extinção.6 Até 2030, metade da população mundial – aproximadamente 5,5 bilhões de pessoas – passará pela falta de água potável por pelo menos um dia da semana. Hoje em dia, segundo semestre de 2025, uma em cada três pessoas no mundo não tem acesso à água potável, assim dizem o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e a Organização Mundial da Saúde, OMS.7 Até 2050, o mundo conhecerá pelo menos 200 milhões de refugiados do clima.
Daí em diante, convém reafirmar: os limites físicos do planeta, desdenhados pela economia mainstream, colocam em xeque à ideia de crescimento sem fim.
Isso significa que estamos diante de paradigmas suicidas.
Dito isso, precisamos dizer algo mais: ao menos em alguma medida, seduzidos pelos encantos do mercado, nos apoiamos na ideia central de que a conquista material é o caminho mais desejado para a prosperidade. Por isso mesmo nossa sociedade humana.
segue apostando todas as fichas na racionalidade produtivista, sem considerar a crise global inaugurada pela relação conflituosa que mantemos com a biosfera.
Com efeito, devido à apropriação intensiva de recursos naturais que a economia de crescimento global exige, contam-se que jamais havíamos convivido com tantos males da modernidade.
Nessa toada, pela cultura do capital (obter lucro com tudo) aliado à lógica da modernidade (sem acumulação não há progresso), apenas para manter o atual estilo de vida da humanidade o mundo precisa de mais de uma Terra. Acontece que não temos um Planeta B.
Portanto, em termos objetivos, a proporção e a intensidade do desajuste planetário (o outro jeito de falar da crise atual) tem desestabilizado o relativamente estável clima que tivemos lá no Holoceno.
Por isso os especialistas em Antropoceno são taxativos: enquanto sociedade consumidora adepta de um modelo de economia linear que engole recursos do mundo natural muito mais rápido do que os ecossistemas são capazes de regenerá-los, seguimos, com nossos hábitos de produção e consumo, interferindo nos ciclos da natureza.
Assim, esquecidos de que todos temos o mesmo destino planetário, causa perplexidade constatar o que Aílton Krenak, há muito tempo, faz questão de anunciar: “a Terra produz vida. Não podemos continuar reproduzindo essas estruturas podres, essas coisas que não têm sentido, continuar enfiando ferro no corpo da Terra”.
Bem entendido esse atual tempo de crise socioambiental e de eventos extremos, lendo Luiz Marques em O decênio decisivo, é possível perceber algo mais: se “mantidos os paradigmas suicidas que regem nossa sociedade”, pesa reconhecer que estamos diante de um único e indesejado rótulo, modernização destrutiva, que aqui, tristemente, também podemos chamar de modernidade suicida, no sentido mais pesado do termo.
MARCUS EDUARDO DE OLIVEIRA, economista e ativista ambiental. Delegado do Corecon-SP em Osasco/SP. Autor de A Civilização em Risco (ed. Jaguatirica, 2024), entre outros.
Notas:
1. São eles: Mudanças no uso da terra do planeta; Mudanças climáticas; Biodiversidade; Ciclo do nitrogênio e fósforo; Uso de água doce; poluição química por compostos como microplásticos; Acidificação dos oceanos.
2. Entrevista de Peter Sloterdijk à Deutsche Welle, reproduzida por Carta Capital, 28.06.2020. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/mundo/os-humanos-nao-estao-preparados-para-proteger-a-natureza/> 3. Consultar: < https://climate.copernicus.eu/>
4. À título de comparação, há três vezes mais vírus e três vezes mais vermes, 12 vezes mais peixes, 17 vezes mais insetos, aranhas e crustáceos, 200 vezes mais fungos, 1,200 vezes mais bactérias e 7,500 vezes mais plantas no mundo do que seres humanos, conforme publicado em “A distribuição da biomassa na Terra”. Disponível na versão em inglês em: < https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1711842115>
5. Relatório de Avaliação Global do IPBES sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. Disponível em: < https://www.ipbes.net/>
6. É o que consta no relatório da Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES), da Organização das Nações Unidas, divulgado em 06.05.2019. Consultar: < https://www.ipbes.net/> 7. Disponível em: < https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/1-em-cada-3-pessoas-no-mundo-nao-tem-acesso-agua-potavel-dizem-unicef-oms>
8. Ver relatório Groundswell, divulgado pelo Banco Mundial, 13.09.2021. Disponível em: < https://www.worldbank.org/en/news/press-release/2021/09/13/climate-change-could-force-216-million-people-to-migrate-within-their-own-countries-by-2050>
9. Pelo menos desde a Conferência de Estocolmo (1972) esse assunto tem sido amplamente discutido.
10. AÍLTON KRENAK, Saiam desse pesadelo de concreto, in Habitar o Antropoceno (Org.) MOULIN et al. Belo Horizonte: BDMG Cultural / Cosmópolis, 2022, p. 220.