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A superação das desigualdades é mais do que um imperativo ético no Brasil, país de profundas e persistentes iniquidades. É também um mandato constitucional. O pacto social expresso na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 3º, define que é objetivo fundamental da República reduzir desigualdades sociais e regionais e promover o bem-estar de todos, sem qualquer forma de preconceito.

Esse imperativo ético também é ressaltado em grandes documentos da história. Desde a Revolução Francesa, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), as emendas à Constituição dos Estados Unidos da América (17871, até a Carta das Nações Unidas de 1945, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e as Convenções da OIT, que tratam da proteção e da dignidade dos trabalhadores.

A igualdade e a justiça social têm sido uma busca permanente das sociedades modernas. No entanto, elas ainda permanecem distantes da realidade. Isso porque o capitalismo vem se mostrando uma extraordinária máquina de produção e inovação, mas falha continuamente na distribuição da riqueza e da renda.

Não poderia ser diferente: a própria dinâmica da concorrência capitalista leva à concentração de renda e riqueza. As grandes corporações são prova dessa tendência.
O mercado não é um mecanismo de distribuição, mas um estímulo ao progresso tecnológico e às inovações. Portanto, a má distribuição da renda e da riqueza não é falha do mercado: é consequência de seu funcionamento.

Os países da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne os mais desenvolvidos em capacidade tecnológica e indicadores sociais, mostraram que é possível enfrentar este problema e adotam políticas distributivas há décadas.

Em estudo da Cepal, alguns indicadores da OCDE revelam isso com clareza. O índice de Gini das rendas de mercado é, em média, cerca de 30% maior do que após a intervenção do Estado, via tributos e transferências2.

Esse indicador nos remete à reflexão sobre o papel do Estado como agente de correção das consequências sociais e econômicas do funcionamento dos mercados. São as políticas públicas que buscam diminuir as desigualdades. No caso da OCDE, a estrutura tributária progressiva taxa mais aqueles com maior capacidade contributiva e menos os com menor capacidade contributiva. Assim, a política tributária já é um fator de redistribuição da renda.

Mas é evidente que isso não basta, pois o gasto público pode ser concentrador. Por isso, durante todo o pós-II Guerra Mundial, as políticas públicas desses países buscaram construir programas de bem-estar social para todo o ciclo de vida – do berço ao túmulo –, como disse Lord Beveridge.

Ao mesmo tempo, houve esforço estatal de estímulo à produtividade, por meio de políticas industriais, de ciência, tecnologia e inovação. As políticas de bem-estar social só se sustentam no longo prazo em um ambiente de crescimento econômico com aumento da produtividade sistêmica e do trabalho.

Os anos de hegemonia de políticas neoliberaisi, que buscaram desmontar esse legado, comprometeram o avanço do Estado de bem-estar social, mas não o destruíram. Se os países da OCDE ainda mantêm indicadores sociais e econômicos robustos, apesar da tentativa neoliberal de girar a roda da história para trás, é por causa das estruturas criadas no pós-guerra, que resistiram ao desmantelamento total, mesmo combalidas.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 buscou criar os marcos legais para a construção de um Estado de bem-estar social – um pacto social sempre contestado por forças políticas que não veem uma sociedade livre, justa e solidária como futuro desejável.

Há vários motivos para isso, desde a manutenção de privilégios seculares até a visão de que o darwinismo social seria mais funcional para o desenvolvimento do país – significando que os mais fortes devem prevalecer sobre os mais fracos. Uma espécie de meritocracia perversa.

O fato é que, com todos os percalços, houve avanços nessa construção.

– Na saúde, temos o SUS, universal e com imensa capilaridade, crucial durante epidemias recentes, da H1N1 à avassaladora Covid-19.
– Na assistência social, o SUAS garante proteção a pessoas em alta vulnerabilidade, tendo o BPC como um de seus maiores programas. Também o Bolsa Família transfere renda a famílias em situação de miséria. A política do salário mínimo, criada nos anos 1940, vem sendo resgatada como instrumento de segurança de renda.
– Na habitação e infraestrutura, destacam-se programas como Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, o programa de cisternas do semiárido e a transposição do Rio São Francisco.
– No trabalho, além dos programas de capacitação do Ministério do Trabalho e do Sistema S, existem o FGTS e o seguro-desemprego, criados antes de 1988.
– Na educação, houve avanços com o Fundeb, a inclusão do ensino pré-escolar no sistema e a alimentação escolar. Apesar do aumento de gastos, a qualidade ainda enfrenta sérios desafios.

Assim, as cinco dimensões da visão original do Estado de bem-estar, formulada na Europa do pós-II Guerra, estão em evolução no Brasil, embora de forma acidentada.

Temos avanços e instrumentos relevantes, mas, ainda assim, o Brasil continua entre os países de maior desigualdade de renda do mundo.

É importante considerar fatores históricos de difícil superação. Foram 350 anos de escravidão no Brasil. A marca profunda do racismo persiste e se expressa nas dificuldades de ascensão social, apesar das garantias constitucionais de 1988. Basta observar a pirâmide de rendimentos: no topo estão os homens brancos, seguidos por mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. Isso ocorre em todas as regiões do país. O mesmo se reflete nos dados de desemprego. 

A Lei das Terras de 1850 é outro fator histórico a contribuir para a desigualdade brasileira. Esta lei estabeleceu como única forma de adquirir terras devolutas a compra, não permitindo a doação, o que inviabilizou o acesso à terra dos que não tivessem recursos e ainda exigiu o registro em cartório. O acesso à terra foi inviabilizado para ex-escravizados e agricultores pobres, mantendo o controle da terra nas mãos de grandes proprietários rurais.

As mulheres também enfrentam discriminação, agravada no caso das mulheres negras. Sofrem mais por serem negras e por serem mulheres, numa sociedade que ainda as trata como mão de obra secundária. Seus salários são menores, os postos ocupados costumam ser subalternos, o acesso a chefias é raro e o desemprego as atinge com maior intensidade, mesmo tendo, em média, nível educacional superior ao dos homens.

Em períodos de crescimento econômico, a situação do trabalho, em geral, melhora – inclusive na distribuição. Mas sempre muito lentamente e de forma desproporcional ao avanço da economia.

Persistem muitos privilégios que reproduzem as desigualdades. É comum a afirmação de que a carga tributária brasileira é uma das maiores do mundo. Não é. A carga no Brasil (33,43%) está próxima da média da OCDE, de 33,9% do PIB3, e é menor que a da França, Itália, Dinamarca, Suécia, Finlândia ou Noruega.

O problema não é o tamanho da carga, mas sua distribuição e a forma como os recursos são gastos. Diversos estudos mostram que a carga tributária brasileira é regressiva: recai mais sobre quem ganha menos e sobre quem tem pouca ou nenhuma propriedade. E há enorme resistência dos beneficiados em mudar essa estrutura.

Levantamento do Ministério da Fazenda concluiu que os gastos tributários – subsídios, incentivos, isenções e renúncias – chegam a R$ 544,47 bilhões no âmbito federal4 . Somados Estados e Municípios, o valor pode ultrapassar R$ 800 bilhões.

Os privilégios fiscais, em si, não são um mal, desde que incluídos em um plano de desenvolvimento que estimule setores estratégicos. Não é o que temos visto. Esses recursos bilionários são escassamente monitorados e não resultam em ganhos econômicos ou sociais relevantes: não aumentam investimentos produtivos, nem produtividade, nem inovação; tampouco reduzem preços ou geram empregos de qualidade. Basicamente, viram privilégios esterilizados na ciranda financeira, que concentram renda e riqueza.

Outro problema estrutural é a sonegação fiscal contumaz, estimada em R$ 500 bilhões anuais 5. Além de prejudicar o financiamento do setor público, representa concorrência desleal e transfere a carga para contribuintes honestos.

Esse ciclo vicioso tem impedido o país de construir um desenvolvimento sustentável. Apenas em gastos tributários e sonegação, mais de R$ 1,3 trilhão são transferidos anualmente para segmentos privilegiados. O Estado gasta mais do que arrecada, endivida-se e perde recursos em uma engrenagem de acumulação espúria. Em vez de financiar crescimento, inovação, empregos e preços estáveis, esses mecanismos alimentam uma dívida pública que cresce por causa dos juros reais elevados (estimados em mais de 10% ao ano, conforme o Boletim Focus), do baixo crescimento e da evasão tributária.

Os privilégios, como instrumentos de reprodução de uma sociedade desigual, devem ser foco do debate econômico. Temos que a diferença de rendimento médio dos 1% mais ricos em relação aos 50% mais pobres é de 36,2 vezes.  Em países como Alemanha e Suécia estes valores estão em torno de 12 vezes. As nossas políticas públicas caminham no sentido correto, mas há ainda privilégios exorbitantes em várias áreas, que precisam ser revistos ou extintos. 

A atual estrutura tributária brasileira onera demasiadamente bens e serviços e proporcionalmente pouco a renda e o patrimônio, fazendo com que o peso seja maior sobre aqueles que gastam suas economias com a subsistência, pois gastam quase tudo o que ganham. A reforma tributária, que começou pela vertente do consumo, tende a tratar desse tema, mas a regulamentação e a fase de transição mostrarão se ela será efetiva. 

Uma democracia saudável exige que a lei seja igual para todos, sem benefícios extravagantes para os privilegiados e com permanente monitoramento daqueles concedidos para estimular setores estratégicos e apoiar segmentos vulneráveis da população.