A economia mundial está ameaçada por uma nova onda de protecionismo e de intranquilidade. O Brasil também sofre. A incerteza estabelecida pelo comportamento errático do presidente dos EUA pode ser tudo, menos uma surpresa. A guerra comercial instituída por Donald Trump, que afirmou que a palavra mais bonita do dicionário é “tarifas”, está mais para sintoma do que para causa da nova desordem global. A provável origem da tardia reação americana está no insucesso em conter o brutal avanço chinês na área industrial, sobretudo nas tecnologias disruptivas (Inteligência Artificial e eletrificação veicular em larga escala) tão fundamentais no presente quanto portadoras de futuro. É importante contextualizar no tempo os fenômenos históricos para que se possa compreender adequadamente eventos dessa envergadura.
O exemplo mais contundente dos novos tempos, mas não o único neste processo, está no segmento de Inteligência Artificial. Embora não seja possível saber ao certo os detalhes, as informações disponíveis apontam que: enquanto o complexo do Vale do Silício dos EUA gastou US$ 100 milhões para desenvolver o ChatGPT, a DeepSeek chinesa afirma ter dispendido US$ 6 milhões. Em linha, o governo Trump 2 “convenceu” a Intel (empresa fabricante de chips de computadores, dentre outros itens) a ceder 10% de sua participação acionária ao governo dos EUA, uma das maiores intervenções do Estado norte-americano numa empresa, desde o socorro às indústrias automobilísticas em 2008; uma negociação baseada na Lei dos Chips e da Ciência estadunidense. Resumindo: o Estado defensor do livre mercado, para além de suas fronteiras, passou a ser sócio direto da empresa transnacional. Esse é o pano de fundo do que se sucede.
Os reflexos geopolíticos são imprevisíveis, mas os efeitos econômicos já estão presentes. Nunca foi tão real a ameaça à hegemonia estadunidense, desde o pós-Segunda Guerra Mundial. A era da turbulência foi definida por Greenspan (2008) como um período marcado por crescimento extraordinário, inovação sem precedentes e riscos inéditos. Essa caracterização permanece atual, mas, agora com intensidade sem precedentes.
Por conta do salto tecnológico chines, em larga escala, o propalado liberalismo, por parte do Partido Republicano, mas nem sempre praticado, saiu literalmente de cena em Trump 2 e, em seu lugar, surgiu a necessidade de intervencionismo, em diferentes frentes, para reindustrializar os EUA. A adoção de tarifas de importação aplicadas sobre vários países e distintos produtos é um dos instrumentos da tentativa de trazer de volta ao território norte-americano as indústrias que foram buscar menores custos e maior produtividade em outras regiões do mundo, como no México, mas especialmente na China. O domínio da tecnologia e o acesso a insumos estratégicos, como minerais críticos e terras raras, tornaram-se sinônimo de soberania; a ausência deles, por sua vez, representa um risco à integridade nacional.
Diante de tanta incerteza, poucas coisas podem ser ditas de forma contundente. Todavia, cabe arriscar uma delas aqui: Trump não conseguirá reindustrializar os EUA no intervalo de seu mandato, pois não é possível fazê-lo a curto prazo. A teoria econômica trata disso do ponto de vista da histeresei. O conceito que a economia emprestou da física, como vários outros, remete à dificuldade de uma mola, por exemplo, voltar ao seu estágio inicial depois de ser submetida por longo tempo a uma determinada força contrária.
A estrutura produtiva industrial dos EUA, ao ser submetida a diferentes forças econômicas das cadeias globais de valor, precisará de tempo e de recursos abundantes para ocupar comparativamente os mesmos índices de relevância mundial que já teve no passado. É um processo de longo prazo e que atravessará governos. Isso serve para os EUA, assim como convém também para o Brasil. Uma política industrial é um plano estratégico de Estado, não do governo de plantão. No entanto, as consequências econômicas das ações inconsequentes do atual governo dos EUA são muitas e o Brasil não está imune. É importante avaliar o tema com a devida atenção, ato por ato, mesmo que o desfecho esteja distante.
O primeiro ato da peça burlesca de Donald Trump, na guerra tarifária, teve a paradoxal denominação de “Dia da Libertação”. A contradição está no fato que que, além de não trazer liberdade para ninguém e para nada, ainda lançou cólera em escala global, inclusive com parceiros históricos dos EUA, como o Canadá e o México. O pretexto foi o de que os EUA tinham déficits comerciais com quase todos os países do mundo e isso precisaria ser reequilibrado, inicialmente por meio de tarifas. Num primeiro momento, 2 de abril de 2025, o Brasil, que tem déficits comerciais com a “América” faz 16 anos, teria ficado com a menor alíquota, que foi de 10% na oportunidade. A atribuição de alíquotas inferiores ao Brasil, em comparação àquelas destinadas a outros países, chegou a ser motivo de alívio, num primeiro momento. Contudo, esse foi apenas o primeiro ato.
No dia 9 de julho, dia no qual São Paulo comemora a Revolução Constitucionalista de 1932, movimento militarmente derrotado, mas que forçou Getúlio Vargas a instituir a constituinte no ano seguinte, o mundo conheceu o segundo ato de Trump que, como Macbeth1, é um líder ambicioso, disposto a romper convenções para manter sua posição, manipulador e obcecado pelo poder. Nesta oportunidade, o presidente dos EUA anunciou que os produtos brasileiros seriam taxados em 50%, a partir de 1 de agosto. A ação mostrou-se, nas justificativas, um mix de ataque à soberania nacional brasileira, da defesa dos interesses das big techs americanas e de inverdades estatísticas; tudo isso feito fora dos canais diplomáticos usuais e com o patrocínio direto do deputado federal, autoexilado, Eduardo Bolsonaro.
Particularmente, no caso brasileiro, a interferência americana ganhou contornos de ameaça ao sublinhar que as tarifas só deixariam de ser aplicadas se a “caça às bruxas” cessasse IMEDIATAMENTE, em letras maiúsculas. O presidente dos EUA fez referência ao processo penal que corre no Supremo Tribunal Federal (STF), pelo qual está sendo julgado o pai do deputado, Jair Bolsonaro. A acusação que recai sobre o réu é de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, acrescida de outros crimes colaterais. Resumindo: Trump quer intervir diretamente nas decisões da Suprema Corte brasileira, pressionando Ministros do STF, por meio de sanções como a Lei Magnitsky e suspensão de vistos, ou indiretamente, por meio do Executivo, pressionando-o para alterar atos do STF, usando como chantagem as sobretaxas comerciais. Algo que, se aceito, seria uma aberração, conforme a Constituição brasileira.
Depois disso, o governo dos EUA, com base legal na seção 301 da Trade Act de 1974, noticiou que abriria investigação contra o Brasil por “práticas desleais”, dentre elas o pix, que compromete o rendimento das bandeiras de cartões de crédito americanas e os sistemas de pagamentos daquele país. As sequelas coercitivas representadas pelas sanções tarifárias impostas pelo governo Trump, ou resultantes da investigação iniciada, mesmo depois de seu mandato ter terminado, sabe-se lá quando, permanecerão na relação bilateral com o Brasil por muito tempo, no âmbito da diplomacia.
A resposta brasileira, por ora, foi pragmática, ao mesmo tempo que buscou deixar de lado a retaliação, pois essa alternativa acirraria ainda mais os ânimos e, certamente, incorreria em custos adicionais à sociedade brasileira. O Vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, foi designado pelo próprio Presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, para chefiar as negociações comerciais, o que revela a importância que foi dada ao assunto. A busca pelo diálogo ocorreu, mas as pontes nunca foram, de fato, estabelecidas, sobretudo do lado estadunidense. Uma reunião agendada entre o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o Secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, foi cancelada e está sem data para ocorrer. A supressão do encontro foi atribuída à articulação do deputado brasileiro autoexilado na naquele país.
Neste intervalo, dada a legitimidade que se busca a partir do multilateralismo, a reação brasileira de levar o tema à Organização Mundial do Comércio (OMC) foi sensata, estrategicamente, a despeito de inexistir expectativa de que haja desfecho adequado a curto prazo, principalmente pela atual fragilização dos organismos multilaterais. Em outra frente, o governo federal anunciou múltiplas medidas [em três eixos – fortalecimento do setor produtivo, proteção aos trabalhadores e diplomacia comercial] que direcionarão mais de R$ 30 bilhões do Fundo Garantidor de Exportações (FGE) em linhas de crédito, por meio do Plano Brasil Soberano, com taxas abaixo do valor de mercado para apoiar as empresas que tiverem recuo no faturamento, por conta do aumento de tarifas estadunidenseiii.
Evidentemente, o melhor cenário seria não haver o tarifaço, principalmente por ele estar sendo praticado embasado em questões políticas e não econômicas2. Contudo, diante de sua existência, cabe governo brasileiro ser hábil e buscar neutralizá-lo o quanto possível for, sem buscar confronto direto. Os consumidores dos EUA são aqueles que pagarão o sobrepreço resultante das tarifas majoradas, ao contrário do que diz o presidente Trump. Considerando verdadeiro o que sugeriu Furtado (1978), ao afirmar que uma nação sem autonomia econômica não pode exercer adequadamente sua soberania: enquanto a diplomacia e a própria pressão interna dos EUA não forem capazes de resolver o imbróglio, especialmente por conta das dificuldades de diálogo no alto escalão dos governos, caberá ao Executivo brasileiro agir, com vistas a mitigar as consequências da retaliação política vinda dos EUA, com instrumentos econômicos que dispõe.
A turbulência causada pela sobretaxação do Brasil no maior nível ganhou destaque em todos os meios de comunicação, evidentemente tem efeitos contrários sobre a dinâmica da economia brasileira, mas não equivale a uma recessão; talvez uma desaceleração. Em outras palavras, é algo contornável. Objetivamente, o impacto negativo no PIB brasileiro, acerca do tarifaço, é estimado entre 0,2% e 1,5%, a depender da fonte e da metodologia. Muito embora a elevação de tarifas sobre os produtos brasileiros esteja acompanhada de uma lista de exceções de quase 700 itens, ainda há muita coisa sobretaxada. Nesta esteira, por exemplo, está a isenção de sobretaxas para aeronaves, consideradas como de interesse estratégico para os EUA.
A análise econômica deve se ater também aos detalhes, pois, se o impacto geral é restrito, baseado na macroeconomia, em determinados recortes ele é severo, sob o olhar microeconômico. Alguns estados brasileiros, cidades e empresas são altamente dependentes das exportações para o mercado norte-americano. Por isso, é necessário avaliar com atenção esses aspectos em particular. Para exemplificar, em 2024, a participação dos EUA, segundo parceiro comercial brasileiro, nas exportações do Ceará representaram 44,9% e, do Espírito Santo, outros 28,6%. Quase 50% dos produtos exportados pelo Brasil para este destino são comodities, principalmente petróleo; siderúrgicos e café. Em verdade, a lista de produtos prejudicados é vasta, mesmo diante das exceções.
Vale compreender o panorama geral, como é comum os estadunidenses dizerem nas avaliações mais complexas de cenários. A atual geopolítica global não é mais a mesma que saiu do pós-Segunda Guerra Mundial, tampouco seja possível afirmar que se tem uma nova ordem mundial, apenas um longo intervalo no qual reina o caos. As diferentes guerras em curso mostram isso. Em verdade, o cenário global está mais próximo daquilo que Bauman, Bordoni (2016) chamaram de interregno. Isto é, a velha ordem já não funciona mais, porém não há nada de novo em seu lugar.
Neste contexto, os ensinamentos de Rui Barbosa, em relação aos Estados Unidos, permanecem atuais: precisamos de uma reaproximação pragmática, com respeito mútuo e que considere os interesses das naçõesiv. Não cabem os caprichos de personagens efêmeros, tudo isso deve ocorrer sem submissão ou subordinação, por parte do Brasil, ao arroubo hegemônico estadunidense. Assim, compete ao governo brasileiro mitigar, quanto possível for, os efeitos das sanções americanas que assolam o Brasil, injustificadas do ponto de vista econômico, patrocinadas por aqueles que se autoproclamam patriotas, mas que, na verdade, atentam contra a Nação em benefício particular.
É importante ponderar: não se trata aqui de defender o multilateralismo sem considerar as longas relações comerciais com os EUA, tampouco a adesão à agenda chinesa de forma temerária. Agir assim significaria apenas trocar um risco de dependência por outro. O multilateralismo deve coexistir com as agendas bilaterais próprias, dentro dos marcos da OMC, do Direito Internacional e dos tratados vigentes, sempre guiadas pelos interesses nacionais e pelo pragmatismo responsável. Na conjuntura atual, é fundamental atravessar o momento turbulento até que se restabeleça alguma normalidade. Enquanto isso não ocorre, é preciso ter clareza de que os verdadeiros interesses a serem defendidos são os dos brasileiros — empresários, trabalhadores e a sociedade em geral. Esse esforço não cabe apenas aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas a todos nós. Ter altivez é indispensável; aceitar o papel de coadjuvante do próprio destino, jamais!
Referências
BARBOSA, Rui. Discursos e Conferências. Rio de Janeiro: MEC, 1942.
BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1978.
GREENSPAN, Alan. A era da turbulência: aventuras em um novo mundo. Rio de Janeiro: Campus, 2008.
SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Bárbara Heliodora. 3. ed. São Paulo: Editora Abril, 2010.
THE ECONOMIST. Donald Trump’s tariffs on Brazil are more bark than bite. Aug 8th 2025. Dispinível online em: https://www.economist.com/the-americas/2025/08/08/donald-trumps-tariffs-on-brazil-are-more-bark-than-bite?utm_campaign=shared_article – Acesso em 25 de agosto de 2025.