Os nefastos acontecimentos de fevereiro último no aprazível litoral norte de São Paulo deixaram todos nós entristecidos e compungidos com o saldo de 65 mortos e muitas perdas materiais. Muitos – entre autoridades, turistas e moradores – apressaram-se em colocar a culpa dessa terrível tragédia na mãe natureza. Nada mais irreal! Em busca dos “causadores” daqueles acontecimentos, seremos surpreendidos pelo número exuberante dos “culpados”.
Comecemos pelo poder público, em todos os seus níveis: federal, estadual e municipal. Aquele em diferentes áreas ou aspectos. Nessa lista, não se pode deixar de lado a própria população, ou melhor, a sociedade, de um modo geral, com seus preconceitos e ressentimentos, frutos de um longínquo e persistente ranço elitista. Nesse conjunto encontra-se também a desigualdade na distribuição da renda, caracterizada por uma injustiça no estilo de vida (moradia) daqueles que habitam a região. Deve-se mencionar, igualmente, a forma pouco racional – para dizer o mínimo – na forma de se promover a alocação dos recursos públicos.
A culpa também cabe aos legisladores por não proporem uma (rigorosa) legislação abrangente de uso e ocupação do solo. Uma lei geral para proteger e disciplinar os assentamentos humanos. Pode-se elencar, ainda, a atuação pouco eficaz da politica habitacional, que existe, mas funciona parcialmente e não atende à maioria da população que vive em situação precária. Os programas/projetos que fluem dessa politica servem – muitas vezes – mais como instrumentos de campanha eleitoral do que, propriamente, de um projeto para dar aos menos favorecidos, ou seja, àqueles que vivem em condições precárias, reais condições de uma moradia digna e, minimamente, segura e confortável.
Assim, antes de culpar a natureza, é preciso “indiciar” os verdadeiros vilões responsáveis pelos fatídicos desastres.
Começando pelos poderes públicos. Eles cumpriram – efetivamente – seus papeis na proteção dos habitantes dessas regiões afetadas pelas avalanches e deslizamentos de morros provocadas por torrentes de aguas mortíferas que correm intensamente nos períodos de fortes chuvas? Não basta pretender instalar sirenes e outros meios de alerta para “avisar” que a tragédia está a caminho. Onde serão abrigados aqueles que devem e precisam abandonar suas casas? As medidas protetivas vão muito além disso e envolvem ações de prevenção que se concretizam na forma de moradias confortáveis para a população de baixa renda, erguidas em áreas comprovadamente seguras . Onde está a política habitacional abrangente dos três níveis de governo?
Articulada com uma diretriz de politica habitacional firme e abrangente é fundamental a existência de uma Lei Geral de Assentamentos Humanos, que imponha rigorosas normas de ocupação do solo para todo o país. Não se deve confundir essa Lei Geral com as normas de um Plano Diretor, que orienta o crescimento e o desenvolvimento urbano do município e, nem tampouco, com uma de Lei de Parcelamento Uso e Ocupação do Solo que define como os terrenos de cada zona da cidade devem ser ocupados, incluindo o tamanho das construções, atividades permitidas e relação entre os imóveis e os espaços públicos. A sugestão é de uma lei de caráter nacional. E rigorosa.
Alguns países similares ao Brasil em termos de desenvolvimento já possuem um ordenamento dessa natureza. No México, por exemplo, criada em 1.976, está vigente, com atualizações em 1.993, 2.016 e 2.021, a Ley General de Asientamientos Humanos, Ordenamiento Territorial y Desarrollo Urbano, que fixa normas básicas e instrumentos de gestão a serem observados nacionalmente, e estabelece – entre outros propósitos — a necessidade da convergência de esforços entre Estados, Municípios e territórios demarcados para o planejamento, ordenação e regulação dos assentamentos humanos em todo o território nacional. Uma lei dessa natureza impõe normas rigorosas de ocupação do solo, além de estabelecer, como norma, uma estrita e articulada atuação conjunta entre a Federação, os Estados e os Municípios.
Não é apenas no litoral norte paulista que ocorrem ocupações irregulares, perigosas e indevidas. Veja-se, a propósito, o que ocorre nas áreas do entorno das represas com construções irregulares e sem saneamento e os usos desordenados das margens. Na região metropolitana de São Paulo, mais especificamente em Franco da Rocha, no ano passado, houve sérios problemas decorrentes de uma ocupação desordenada de áreas impróprias e torrentes de água correndo intensamente durante períodos intermitentes de chuva (enxurradas), causando destruição e perdas de vidas. No Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente, em Petrópolis os danos foram ainda maiores, em termos de vidas humanas e perdas materiais.
Em qualquer dos casos deve-se sublinhar um aspecto crucial do papel do poder público municipal: o uso responsável, eficiente e eficaz dos recursos orçamentários. As cidades onde ocorreram os desastres obtiveram nos últimos anos uma “polpuda” verba extra para seus orçamentos na forma de “royalties” derivados da exploração de petróleo nas suas orlas marítimas. De acordo com dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis-ANP, em 2.022, os municípios de São Sebastião, Ubatuba, Caraguatatuba e Ilhabela receberam R$ 632,7 milhões de “royalties”. Ilhabela recebeu R$ 336 milhões (a maior verba), São Sebastião R$ 145,1 milhões; Caraguatatuba R$ 138,7 milhões e Ubatuba R$ 13 milhões. É de se perguntar: quanto desses valores, orçamentariamente assegurados, foi efetivamente destinado (ou utilizados) para proteger as populações mais pobres, mais carentes. Lembremo-nos que nem sequer as sirenes foram instaladas!
No caso do Governo Estadual, é oportuno indagar se tem ocorrido aplicação de recursos na construção de moradias populares na região. Pelo que se viu, pelo que se constatou e pelo número de famílias que ficaram desabrigadas, a resposta é negativa. Nessa tempestade de desgraças, onde está a politica habitacional?
Para concluir, uma questão nacional, o da desigualdade socioeconômica, cujos reflexos ali no litoral norte paulista se mostram bem concretos. É oportuno lembrar que, segundo dados do IBGE, os 10% mais ricos do Brasil ficam com 43% da renda nacional. No caso do litoral norte, aqueles de renda alta – moradores, proprietários de residências de veraneio, ou mesmo turistas empedernidos – não admitem nas suas vizinhanças moradias populares. Podem desvalorizar suas propriedades, seus luxuosos condomínios. E se batem por isso, empurrando os mais pobres para longe, para a parte inferior da encosta, para os sopés dos morros! Vem daí o preconceito, a discriminação, pois o abastado proprietário não quer sua elegante moradia rodeada de casas populares. A eliminação dessa injusta desigualdade ultrapassa os limites de poder dos municípios. É um problema de politica econômica. A ser resolvido no âmbito federal.
Parabens, pelo excelente e abrangente texto. Com uma forma muito bem clara de ver onde realmente estão os problemas que assolam a população mais carente.
Prof. Vicente, juntamente com a política econômica, faz necessário o social para que os preconceitos e paradigmas sejam revistos e mudados por meio da conscientização. Abraço