Assim como a Revolução Industrial, o capitalismo não surgiu numa bela tarde ensolarada em Amsterdã — uma das primeiras cidades a florescer sob os ventos do capitalismo comercial, onde bolsas de valores e companhias de navegação moldavam os contornos de um novo sistema econômico.
Desde o seu surgimento, no final do período feudal, passando pelo mercantilismo e consolidando-se após a Revolução Industrial, o sistema capitalista vivencia o que Karl Marx chamava de metamorfose do capitalismo. Para Marx, a essência do capitalismo é a exploração do trabalho.
E mesmo que mude de forma — passando do capitalismo industrial do século XIX ao capitalismo financeiro, digital ou de plataformas do século XXI — a relação entre capital e trabalho continua sendo desigual.
Atualmente, vivemos a era das plataformas. Por meio delas, uma pessoa pode alugar um veículo, fazer entregas e transportar passageiros. A ideia de gravar uma dança e viralizar — ou seja, tornar-se uma celebridade vazia de si mesma — virou o troféu do momento. A popularização da autoimagem se transforma em contratos de publicidade e dinheiro.
Essa nova lógica nos traz o novo empregado do século XXI: alguém sem direitos, que odeia o INSS, abomina a CLT e trabalha 12 horas por dia sob a fantasia de empreendedor.
Hoje, a palavra do momento é “empreender”. Só que dirigir um carro de aplicativo ou prestar serviços pontuais como profissional liberal não é empreender.
Empreender é identificar oportunidades de negócio, desenvolver ideias e colocá-las em prática — frequentemente com o objetivo de criar algo novo ou melhorar algo existente.
Quando Joseph Safra criou seu banco, ele foi um empreendedor. Mas quando o trabalhador dirige um carro fazendo entrega fora de seu expediente, ele não está empreendendo. Está fazendo um freelance.
E não há problema algum em ser freelancer — inclusive, é uma ótima forma de complementar a renda pessoal ou familiar. O problema é confundir isso com empreendedorismo, algo que tem sido incentivado por influenciadores com “dicas” como: faça bolo de pote, baixe um aplicativo de transporte, ofereça-se para lavar o carro do vizinho…
Embora eu possa parecer sectário, não sou. Nós, economistas, trabalhamos com a realidade.
Safra identificou uma oportunidade, desenvolveu uma ideia e criou um dos maiores bancos da América Latina.
Madame C.J. Walker foi uma empreendedora de fato: começou produzindo produtos para cabelo ao observar uma necessidade em sua comunidade. Desenvolveu a ideia e aprimorou os produtos já existentes.
O Microempreendedor Individual (MEI) foi criado para ajudar o pipoqueiro, a empregada doméstica, o encanador — trabalhadores que estavam à margem dos benefícios sociais concedidos aos celetistas.
Mas a substituição do trabalhador formal pelo MEI vem, hoje, numa roupagem de economia social, onde se pretende entregar “valor humano” quando, na verdade, se deveria entregar respeito, dignidade e salários justos.
E, dentro dessa nova ordem econômica — onde ninguém tem nada, nem mesmo o próprio emprego — a mão invisível de Adam Smith já não regula: ela enforca.
Primeiro, o trabalhador. Depois, o capitalista — que sucumbe pela ausência de consumidores.