O chamado “Dia da Libertação”, promovido por Donald Trump, chegou com estardalhaço. Para alguns, um marco de liberdade econômica e política. Para outros, o prenúncio de um novo ciclo de instabilidade global. No meio das análises rasas e manchetes apressadas, Trump se tornou o bode expiatório perfeito para o déblacle das Bolsas de Valores e para a crescente desordem econômica mundial.
Mas é preciso ir além da superfície.
A Bolsa de Valores é, antes de qualquer coisa, um instrumento de desenvolvimento. Seu papel primordial é permitir que empresas captem recursos de forma rápida e eficiente, impulsionando investimento e produtividade. No entanto, esse mecanismo passou a refletir muito mais o humor especulativo dos investidores do que os fundamentos concretos da economia real.
Mais do que isso: a Bolsa é um espelho da nação. Quando um país vai bem, seus mercados tendem a demonstrar confiança, mesmo diante de momentos de euforia ou pânico. O problema começa quando esse espelho passa a refletir distorções causadas por instabilidades políticas, populismo ou falta de estratégia produtiva — afastando o mercado financeiro de seu propósito original.
E, ainda assim, analistas insistem em culpar o presente, ignorando o acúmulo histórico de erros.
Tomemos a Europa como exemplo. Após o vigoroso crescimento pós-Segunda Guerra — principalmente entre os anos 1950 e 1970 —, o continente foi se distanciando de sua vocação produtiva. Optou por uma combinação de rigidez trabalhista, hiper-regulação e um Estado de bem-estar social inchado. Enquanto isso, Estados Unidos e China disputam a liderança em tecnologia, inovação e domínio geopolítico. A Europa, por sua vez, discute se é mais ecológico abrir uma tampa de garrafa para a direita ou para a esquerda.
Em 2000, os 20 países da zona do euro representavam quase 20% da economia mundial. A China, menos de 4%. Em 2023, a participação chinesa saltou para 17%, enquanto a da zona do euro encolheu para menos de 15%. O espelho europeu quebrou — e os mercados, ao redor do mundo, estão apenas refletindo essa rachadura.
A Europa precisa resgatar sua vocação produtiva e abandonar a paralisia ideológica que a mantém refém de debates inócuos. Isso passa por reformas estruturais que flexibilizem o mercado de trabalho, incentivem a inovação e a competitividade industrial, além de revisar o modelo de bem-estar social para torná-lo sustentável a longo prazo. É imperativo que o continente volte a investir em ciência, energia limpa própria e reindustrialização inteligente, em vez de apenas tentar regulamentar o que já está atrasado. Sem isso, continuará sendo apenas um retrato nostálgico de um passado glorioso.
China
Quando Deng Xiaoping morreu em 1997, deixou um legado ao novo império chinês — que talvez nem ele imaginasse que seu país se tornaria: a potência do século seguinte.
Foi ele quem abriu a China para o mundo, tornando-a um país regido com a mão de ferro de um regime comunista totalitário, mas com uma economia capitalista.
Inclusive, qualquer empresa ou país poderia aportar seus recursos na China, desde que em convênio com empresas chinesas.
No início deste século, a China era a sexta economia mundial; hoje, ocupa a segunda posição.
Ao longo desses anos, fortaleceu-se em polos importantes para a economia. Tornou-se referência na indústria de base — cargo anteriormente ocupado pela Alemanha. Também fez investimentos pesados em inovação tecnológica e, hoje, disputa o mercado de chips com os Estados Unidos.
No entanto, a China também enfrenta seus próprios fantasmas. A queda na taxa de natalidade preocupa o Partido Comunista, ameaçando o equilíbrio entre população ativa e aposentada. E crises como a da Evergrande — um símbolo do colapso do setor imobiliário chinês — levantam dúvidas sobre a solidez do crescimento.
Esse problema se agrava porque a renda média na China gira em torno de US$ 1.116 mensais, enquanto, na República Tcheca, por exemplo, o salário médio é de US$ 2.281.
Temos, portanto, um país rico, com uma população de baixa renda. Isso pode se tornar perigoso, mesmo com a China tendo a segunda maior população mundial.
Brasil
Durante o Regime Militar, o Brasil também experimentou um milagre econômico, desenvolvendo sua indústria e mantendo uma educação aceitável. Éramos um país em crescimento.
Com a redemocratização, iniciamos um modelo de abertura econômica com José Sarney, que se consolidou na era Fernando Henrique Cardoso.
Optamos por seguir o atual modelo europeu — que, mesmo tendo condições de produzir sua própria energia, escolheu importar gás russo.
A falta de um projeto de nação claro, contínuo e estratégico condena o Brasil à periferia dos grandes ciclos de inovação global. Exportamos commodities e importamos tecnologia — um paradoxo que nos mantém vulneráveis às oscilações externas e aos nossos próprios desequilíbrios internos.
Hoje, temos um dilema: poderíamos aproveitar o enfraquecimento europeu para aumentar nossa produtividade e reindustrializar o país, tornando-nos uma alternativa ao velho continente. Mas, em vez de trilharmos nosso próprio caminho, estamos nos alinhando à China — que nada tem a nos oferecer além de sua tecnologia em troca de commodities e produtos de baixo valor agregado.
Se quisermos que o espelho volte a refletir progresso, precisamos de mais do que ajustes pontuais ou líderes messiânicos. É necessário um pacto nacional envolvendo Estado, iniciativa privada e sociedade civil em torno de um projeto de país que privilegie a educação de base, a inovação tecnológica, a reindustrialização sustentável e a integração comercial estratégica — sem servilismo ideológico a nenhuma potência. Um país que não define seu futuro acaba refletindo o de outros.
Bolsas
As Bolsas vão voltar a subir, independentemente do desfecho dessa situação. O que determinará um crescimento sustentável serão as políticas econômicas sólidas adotadas daqui em diante.
Mercados periféricos como o Brasil podem crescer, mas, se não tiverem sustentabilidade, continuarão a ser apenas destinos de capital especulativo: recebem dinheiro fácil quando o mundo está líquido, mas o perdem assim que o cenário global se aperta.
Conclusão
A economia global vive um tempo de espelhos quebrados — onde os reflexos já não mostram a realidade, mas sim as distorções de uma política sem norte, de mercados hipnotizados pela volatilidade e de sociedades presas a ilusões ideológicas. Trump é apenas o sintoma mais barulhento de um mundo em crise de identidade.
E ele sabe disso. Usa essa crise para se impor e buscar soluções que beneficiam unicamente os Estados Unidos.
A Europa precisa parar de discutir o tamanho das letras nas placas de trânsito e voltar a debater produtividade, ciência e competitividade. O Brasil precisa abandonar seu eterno complexo de vira-lata — ora copiando modelos fracassados, ora se ajoelhando diante de novos imperialismos — e finalmente se comprometer com um projeto de desenvolvimento que seja nosso.
Fora disso, tudo é apenas ruído. Um ruído no qual poucos ganham fortunas com a especulação, enquanto a manada se perde seguindo pastores que também estão perdidos.