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Neste texto, procuro relacionar a Economia do Cuidado e suas implicações na participação das mulheres no mercado de trabalho, destacando eventos ocorridos no último ano pelo mundo e suas projeções para 2024.

Em outubro de 2023, a economista norte-americana Dra. Claudia Goldin ganhou o Prêmio Nobel de Economia por sua pesquisa sobre a disparidade de gênero (gender gap) e a participação das mulheres no mercado de trabalho, tornando-se a terceira mulher a receber esse prêmio em 54 anos de existência do Nobel.

Com mais de três décadas de investigação científica, a pesquisadora e professora do departamento de economia da Universidade de Harvard apresentou em seus estudos fatores que explicam a desigualdade salarial entre homens e mulheres ao longo da história.

Um dos fatores está relacionado à maternidade, especialmente no retorno da licença após o nascimento do primeiro filho, impactando diretamente na carreira profissional das mulheres ao conciliarem as demandas de cuidado materno com as responsabilidades do trabalho.

Outro fator está ligado ao uso da pílula anticoncepcional, que permitiu às mulheres ter certo domínio hormonal de seus corpos para melhor planejar suas formações acadêmicas e profissionais, dedicando mais tempo ao trabalho e postergando a gestação e a formação de suas famílias.

O terceiro fator está relacionado à demanda dos empregadores por horas extras de trabalho e à disposição dos empregados em trabalhar além do horário comercial (conhecido como “greedy work” – trabalho ganancioso). Como as mulheres geralmente são responsáveis pelo trabalho doméstico e pelo cuidado com familiares (trabalho reprodutivo não remunerado), isso as impede de competir com aqueles que têm disponibilidade para fazer horas extras e ascender na carreira.

Além disso, Goldin analisou 200 anos da evolução histórica do desenvolvimento econômico global e descobriu que o crescimento econômico não resultou em uma maior participação feminina no mercado de trabalho, muito menos na diminuição da desigualdade salarial.

Em seu livro “Understanding the Gender Gap” (1990), ela aponta que mulheres e homens ocuparam postos de trabalho e tiveram remunerações aproximadas apenas na época da revolução industrial (1820-1850) devido à alta demanda das fábricas por mão de obra.

Durante a pandemia de Covid-19, Goldin continuou analisando a participação das mulheres no mercado de trabalho e verificou que a flexibilidade da jornada, graças ao avanço da tecnologia (trabalho remoto), é um importante mecanismo de promoção da equidade de gênero no trabalho.

O trabalho remoto possibilita que as mulheres trabalhem em casa, evitando deslocamentos e otimizando o uso do tempo para conciliar as atividades domésticas e familiares com o trabalho remunerado, ampliando a participação feminina no mercado de trabalho.

No entanto, estudos já apontam que essa sobrecarga de atividades realizadas pelas mulheres está ocasionando prejuízo à saúde física, mental e emocional delas, com o aumento do nível de exaustão e cansaço, e consequentemente, improdutividade.

Estes dados explicam por que atualmente apenas 50% das mulheres estão ativas no mercado de trabalho, em comparação com 80% dos homens. As dificuldades que as mulheres enfrentam para trabalhar no mercado e realizar as atividades de cuidado mostram as disparidades competitivas que elas enfrentam para se manter ativas e produtivas economicamente.

Todavia, em um mundo cada vez mais dependente do trabalho de cuidado, as atividades não remuneradas desempenhadas pelas mulheres são fundamentais para a manutenção e sustentação da economia, permitindo que o sistema econômico produtivo opere da forma como conhecemos. Isso ocorre porque, sem o cuidado, não há produção. O cuidado é, por si só, um trabalho produtivo (exige tempo, possui técnica e é um serviço que gera valor).

Por isso, relaciono os fatores apresentados por Goldin com um outro campo de estudos chamado “Economia do Cuidado”, para entender os motivos pelos quais continuamos desperdiçando recursos financeiros cruciais, gerados pelas mulheres, em nossa sociedade.

É difícil indicar quem criou o termo “Economia do Cuidado” (Care Economy), pois diversas pesquisadoras ao redor do mundo problematizam o entendimento sobre cuidados em suas diferentes áreas de conhecimento e perspectivas epistemológicas, com estudos que perpassam entre as décadas de 1960 e 1990.

Ao meu ver, a Economia do Cuidado é um importante instrumento de reconhecimento e valorização do trabalho realizado pelas mulheres visando à sustentação da vida e do bem-estar de todas as pessoas.

Segundo pesquisa da ThinkOlga, as mulheres dedicam, em média, 61 horas por semana para trabalhos de cuidado (que não são remunerados). Agora, imagine que essas horas fossem incluídas no ciclo de trabalho produtivo e, portanto, remuneradas. Você seria capaz de mensurar quanto de recurso financeiro as mulheres estão gerando para o sistema econômico produtivo? A ThinkOlga fez essa conta em 2021.

Se todas as horas dedicadas ao cuidado fossem remuneradas, o trabalho realizado pelas mulheres geraria 10,4 trilhões de dólares por ano (seria o 4º maior PIB do mundo, com valor 24 vezes maior do que a economia gerada pelo Vale do Silício anualmente).

Entretanto, todo este potencial financeiro gerado pelo trabalho do cuidado ainda está longe de ser absorvido e inserido no PIB por não ser considerado um “trabalho produtivo”, e, portanto, gerador de riqueza e valor para o mercado.

Isso ocorre porque o tempo dedicado ao trabalho de cuidado, que garante a sustentação e manutenção da vida (saúde, educação, etc.) de todas as pessoas do núcleo familiar (crianças, adultos, idosos, pessoas enfermas e com deficiência – PcD), é dado como uma obrigação da função social da mulher, revestido de fatores emocionais como afeto e amor.

Além disso, a invisibilidade do trabalho, a falta de regulamentação, valorização e reconhecimento das ações geradas pelas trabalhadoras do cuidado impossibilitam que o sistema produtivo incorpore tal valor.

Trabalhadoras domésticas (cozinheira, faxineira, babá), da educação (professora, creche) e da saúde (enfermeira, fisioterapeuta) seguem lutando por condições de trabalho decentes, com instrumentos de trabalho adequados, registro na carteira de trabalho (piso salarial, FGTS) e direito à aposentadoria (INSS). Na pandemia, esses trabalhos foram considerados essenciais e, não à toa, sustentaram o funcionamento dos demais setores econômicos.

Segundo estudos da ThinkOlga, 93% das trabalhadoras domésticas da América Latina são mulheres. Durante a pandemia, 58% das mulheres que ficaram desempregadas no Brasil são negras e 47,8% das mulheres negras têm trabalho informal. Isso mostra outro fator importante: a Economia do Cuidado tem gênero e raça (mulheres e negras) no Brasil.

Com base no Censo 2022, a população idosa brasileira (65+) cresceu 57,4% em 12 anos. O índice de envelhecimento aponta que há 80 idosos (60+) para cada 100 crianças (de 0 a 14 anos). Essa população demanda cuidados específicos e profissionais qualificados, cujo tempo de trabalho se equipara à jornada de um empregado CLT (40 horas semanais).

Considerando o cenário demográfico e as condições do mercado de trabalho brasileiro, percebe-se que há uma oportunidade de incluir serviços e trabalhos de cuidados na Economia, visando melhor atender e remunerar a demanda que já existe e se preparar para ampliar a base produtiva, cuja tendência é crescer para atender a demanda futura.

Para tanto, será necessário preparo e qualificação das trabalhadoras e cuidadoras, bem como uma regulação capaz de fomentar o mercado em condições dignas, acessíveis, éticas e democráticas.

Se o sistema econômico não abarcar esta demanda, isso acarretará em distorções e vulnerabilidades ainda maiores para as mulheres, com sobrecarga de trabalho e aumento das desigualdades de gênero no mercado de trabalho.

O Estado tem um papel primordial na incorporação do trabalho do cuidado no sistema produtivo. Ao reconhecer a relevância e o impacto que este trabalho gera para a sociedade, o poder público pode implementar políticas públicas e legislar sobre a matéria para garantir direitos e remuneração adequada às trabalhadoras do setor.

Cito exemplos concretos: países como Uruguai e Argentina possuem leis e políticas nacionais de cuidados que regulamentam atividades de cuidados e prestações de serviços públicos e privados do setor, garantindo que trabalhadoras e cuidadoras tenham seus direitos reconhecidos, e seus cidadãos tenham respaldo no acesso aos serviços.

Inspirado nos países vizinhos, está tramitando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 2647/2021, que visa reconhecer o cuidado materno enquanto tempo de serviço para fins de aposentadoria das mães com menos de 15 anos de contribuição para a previdência, já que muitas delas abdicaram de suas carreiras profissionais para se dedicar aos cuidados.

Em 2023, o governo federal brasileiro anunciou a criação de um grupo interministerial (GTI) responsável por elaborar a primeira norma nacional de cuidado (política e plano de ação), com previsão de lançamento da Política Nacional de Cuidados no primeiro semestre de 2024.

Com isso, o Estado estabelece parâmetros e regulamentos importantes para a estruturação de serviços de cuidados que atendam as demandas da população brasileira, gerando oportunidades reais de incorporar o valor do trabalho de cuidado no PIB do país.

A Economia do Cuidado é um caminho viável que melhora as condições das mulheres no mercado de trabalho e também contribui significativamente para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. E o mais importante: que todo o potencial do trabalho feminino seja incluído no âmbito produtivo, sem que elas precisem se sacrificar para atender às expectativas do mercado.

Indicações de vídeos e textos complementares

Vídeo “LABORATÓRIO THINK OLGA | ECONOMIA DO CUIDADO”, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2oN_anHOEaM&t=58s

Vídeo “Economy is Care”, disponível em https://www.economy-is-care.com (by https://www.inapraetorius.ch)

Vídeo do Giro Econômico sobre Economia do Cuidado na América Latina, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AvqHfq9nwGQ

Vídeo do Giro Econômico sobre Empreendedorismo Feminino e Economia do Cuidado, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WoZjiRBR9dk

Matéria “Censo 2022: número de pessoas com 65 anos ou mais de idade cresceu 57,4% em 12 anos”, disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38186-censo-2022-numero-de-pessoas-com-65-anos-ou-mais-de-idade-cresceu-57-4-em-12-anos#:~:text=Considerando%20a%20popula%C3%A7%C3%A3o%20de%20idosos,de%200%20a%2014%20anos.

IPEA Relatório de pesquisa “Economia dos Cuidados: Marco Teórico-Conceitual”, disponível https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/20161107_relatorio_economiadoscuidados.pdf

Think Olga, Relatório Final “Economia do Cuidado”, disponível em https://lab.thinkolga.com/relatorio-final-economia-do-cuidado/

PL aposentadoria pelo cuidado materno
https://www.camara.leg.br/noticias/1032113-comissao-aprova-projeto-que-facilita-aposentadoria-por-idade-para-maes#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Previd%C3%AAncia%2C%20Assist%C3%AAncia,atingido%2015%20anos%20de%20contribui%C3%A7%C3%A3o.

Criação do GTI de Cuidados para formular a Política Nacional de Cuidados
https://www.gov.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/governo-federal-lanca-grupo-de-trabalho-para-elaboracao-da-politica-nacional-de-cuidados

Gráficos (Fonte e Elaboração: ThinkOlga)

Lia Lopes

Economista, especialista em Gestão Pública Legislativa e consultora em Finanças e Projetos e membra da Comissão de Equidade Racial do CORECON-SP

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