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A política fiscal é um instrumento fundamental da atuação do Estado. Por meio de sua definição, decide-se a origem dos recursos públicos e onde eles serão investidos. Ao discuti-la, em nosso País, deve-se ter como orientação o artigo 3º da Constituição Federal: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” e, seu inciso terceiro, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. 

As ideias políticas e econômicas têm merecido atenção dos economistas faz muito tempo. Ludwig von Mises (2021), na sexta lição de seu livro, relacionou essas ideias e a atuação dos grupos de pressão. De um lado, afirmou ele: o homem não é um ser que tenha uma dimensão econômica dissociada de outra política. Sobre os grupos de pressão, define-os como aqueles desejosos da obtenção de privilégios às custas do restante da Nação. Essa é a estrutura que dá forma aos debates relacionados às Contas Públicas no Brasil, na atualidade. No limite, o que está em pauta é mais uma das faces do conflito distributivo, num país que está entre os dez mais desiguais do mundo. 

Na retórica sobre os desafios fiscais do Brasil, é comum a apresentação de diagnósticos técnicos que apontam para a necessidade de “ajuste”, “responsabilidade” e “eficiência”. Essa discussão ocorre em grande parte do mundo, não é um debate restrito ao País. Cabe perguntar: quem poderia ser contrário à essa reorganização das despesas e das receitas públicas? Grande parte dos “experts” tem sugerido uma lista de itens que poderiam ajudar na reorganização das Contas Públicas. Desde já, há que se considerar o que ensinou o sociólogo Pierre Bourdieu (2011): não há ato desinteressado.  

Neste contexto, este artigo não pretende exaurir o tema fiscal. A finalidade aqui é explorar os principais tópicos que devem ser considerados em qualquer tipo de endereçamento que o tópico deva ter, sem que se subjugue, como já foi referido, o Art. 3o. da CF/88, sobretudo no que se refere à erradicação da pobreza e à redução das desigualdades sociais e regionais. Ademais, é sempre bom lembrar, o Brasil, como signatário da Agenda 2030 da ONU (Organização das Nações Unidas) tem como meta até 2030, reduzir as desigualdades, por meio do crescimento da renda da população mais pobre, num ritmo superior ao da média nacional.  

Neste quadro é necessário destacar algumas questões. Primeiro, a austeridade é indicada sempre para os outros. Como argumenta Clara Mattei (2023), a austeridade fiscal está longe de ser apenas uma resposta racional à escassez: trata-se de uma escolha política, sustentada por uma ideologia que busca reorganizar a sociedade segundo os interesses do capital, no Brasil e no mundo. O recente exemplo do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado por Elon Musk e Donald Trump, lançou luz sobre a forma como a retórica da produtividade e da eficiência tem sido mobilizada para deslegitimar o papel do Estado, subordinar os bens públicos aos interesses privados e enfraquecer a democracia. A incipiente trajetória desta iniciativa revela, minimamente, o erro de diagnóstico, quando não a falácia do propósito. 

Segundo, as finanças de um país são muito diferentes às de uma família, sobretudo porque essa última não emite sua própria moeda. Tem sido comum a comparação capciosa entre o orçamento de uma família e as finanças da União. Essa narrativa encontrou guarida a partir de intelectuais orgânicos que têm acesso aos mais influentes meios de comunicação e que ajudam a disseminar o autoengano coletivo de que é preciso cortar gastos quase que indiscriminadamente, sobretudo sociais. O problema é que essa opção equivale a manter privilégios, sobretudo de grupos de pressão organizados. 

Terceiro, no Brasil, Bruno Carazza, no primeiro volume de sua obra, mapeou os principais segmentos privilegiados da sociedade. São eles os magistrados, os membros do Ministério Público, a elite dos poderes Executivo e Legislativo, os advogados públicos, a elite militar, os políticos e os donos de cartórios. O segundo volume, ainda a ser publicado, trará mais grupos, como empresários de grandes corporações. Disse Carazza (2024, p. 30): “No dia a dia dos gabinetes e tribunais, uma minoria poderosa e muito bem-organizada se mobiliza para criar benefícios. Do outro lado, reside uma imensa maioria silenciosa e desarticulada que paga a conta.” 

Ao se apresentar a qualidade da carga tributária no Brasil — isto é, a origem dos tributos, é importante ilustrarmos o que ocorre com alguns deles, como é o caso do ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural) e do ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação).  Quanto ao ITR, é importante lembrar que este tributo é autodeclaratório. Segundo dados recentes, a arrecadação anual deste imposto em todo o Brasil é inferior ao valor arrecadado com IPTU na cidade de São Paulo durante dois meses e meio. 

Outro ponto em discussão é o imposto sobre herança, o ITCMD. A alíquota, por exemplo, no estado de São Paulo é de 4%. Para uma visão comparativa, quando a princesa Diana morreu naquele desastre em Paris, ela deixou US$ 30 milhões de herança para seus filhos e o governo inglês cobrou cerca de US$ 15 milhões em impostos sobre a herança. Um outro imposto a ser considerado é o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas), ainda carente de regulamentação, especialmente considerando que o Brasil é um dos países que têm a renda mais concentrada do planeta. 

Por outro lado, é necessário observar como o governo gasta os recursos arrecadados. Aí, identifica-se muitos dos setores privilegiados da nossa sociedade, mapeados por Bruno Carazza. Em primeiro lugar, destaca-se o pagamento de juros da dívida pública, que, neste ano, deve chegar à casa de R$ 1 trilhão, destinados aos proprietários dos títulos públicos do País. 

Além da equalização, que corresponde à subvenção destinada à agricultura por meio do Plano Safra, uma segunda área de gastos privilegiados são os subsídios e as renúncias fiscais, que, segundo dados do governo, devem atingir R$ 800 bilhões neste ano1. Um exemplo são os setores que querem manter esses benefícios, como no caso do PERSE — programa criado durante a pandemia para determinados setores, mas que mesmo após o fim da crise, ainda é defendido por seus beneficiários. Outro ponto relevante é em relação as emendas parlamentares, que hoje alcançam cerca de R$ 50 bilhões. O Brasil é um dos únicos países do mundo, ou talvez o único, em que os parlamentares têm uma ação decisiva sobre como gastar o orçamento.  

Outras áreas a serem destacadas são de setores do funcionalismo público. O salário máximo do funcionalismo é baseado na remuneração de um ministro do Supremo Tribunal Federal, atualmente de R$ 46.300,00. O Poder Judiciário brasileiro é considerado, segundo informações disponíveis, um dos mais caros do mundo, com o salário de magistrados bem acima desse teto. Além disso, há situações peculiares, os chamados “penduricalhos” dentro desse Poder, que levantam enormes questionamentos. Outro setor privilegiado no gasto público são as Forças Armadas, cujos integrantes são os únicos servidores que se aposentam com salário integral.  

A revisão dos gastos públicos é inadiável, e não pode recair exclusivamente sobre quem ganha salário-mínimo. A lógica da eficiência, nesse contexto, torna-se armadilha. Exige-se que o Estado “gaste melhor”, o que na prática quer dizer “gaste menos” — ainda que isso custe saúde, educação e direitos sociais essenciais. Evidentemente, há que se buscar a eficiência do Estado, mas, com o cuidado em relação ao discurso da máquina pública inchada, pois faltam servidores em várias áreas. 

Para enfrentar esse cenário adverso, é preciso compreender a mensagem implícita ao discurso da ortodoxia fiscal, nem sempre republicana. A solução passa pelas despesas e pelas receitas do governo. A responsabilidade fiscal deve ser inclusiva, equilibrando contas sem sacrificar direitos. É necessária uma reforma tributária da renda que seja progressiva, o controle democrático do Orçamento e o urgente combate aos privilégios. A austeridade centrada apenas nos gastos sociais, de per si, como mostra Clara Mattei, é técnica de dominação. Trazer à tona propostas fundamentadas sobre como mitigar o conflito distributivo no Brasil é uma tarefa democrática e coletiva. É essa a intenção do Corecon-SP. 

O desafio, antes de tudo, é político. Não se trata apenas de conter despesas, mas de decidir para quem o Estado deve funcionar e de que maneira dividir os custos e os benefícios atrelados. Se o crescimento econômico e a redução da taxa de juros básica estão condicionados à trajetória e mesmo à redução da dívida, é imperioso que isso se dê sem o desmonte da tênue estrutura de proteção social existente. Do contrário, a promessa de desenvolvimento será apenas uma miragem a serviço do atraso. 

Cumpre lembrar o que Noam Chomsky (1966) parafraseou sobre os temores elitistas: “Eles, assim como os jornais, sabem muito os pecados dos outros, mas não o suficiente sobre os seus próprios”. Diante dos desafios fiscais e das desigualdades estruturais do Brasil, fica evidente que o ajuste das Contas Públicas não pode ser um fim em si mesmo, mas um meio para promover a justiça social e o desenvolvimento sustentável.  

Como demonstrado, a austeridade seletiva e a perpetuação de privilégios apenas aprofundam o conflito distributivo, enquanto a verdadeira responsabilidade fiscal exige coragem para reformar a tributação sobre a renda, amparada nos exemplos internacionais, e em combater os benefícios exacerbados e injustificáveis de grupos organizados e, ao mesmo tempo, garantir que o Estado funcione para a maioria, e não para uma minoria singular. 

Referências  BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Zouk, 2011.   CARAZZA, Bruno. O país dos privilégios: Volume I: Os novos e velhos donos do poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.  CHOMSKY, Noam. Novas e velhas ordens mundiais. São Paulo: Scritta, 1966.  CLARA, Mattei. A ordem do capital. São Paulo: Boitempo, 2023.  MISES, Ludwig von. As seis lições. São Paulo: MEDIAfashion – Folha de São Paulo, 2021.